Uma porta entreaberta...
sempre viu o mundo por uma porta entreaberta, não estava amarrado, nem preso...
não era mantido refém, nada obrigava que ele ficasse no canto, nem que ele fosse proibido de sair.
Conhecia o mundo do lado de fora... Tudo pela metade.
Mas já conhecia o suficiente pra saber que não deveria se arriscar saindo de seu confinamento...
Observava as brigas,
intermináveis... e sem motivo algum,
mesmo sem nunca ter vivido nenhuma delas, conhecia a IRA presente nos gestos, vocábulos, expressões...
não as entendia,
Mas eu sempre lhe dizia: "Não tem problema... nós também não as entendemos... brigamos por brigar... nós somos assim..."
Temia o dia em que precisasse sair do seu confínio escuro e aconchegante,
temia porque não gostava de nós,
e temia que suas reações frente as nossas atitudes fossem julgadas inapropriadas e erradas,
Olhando pela porta entreaberta,
percebia o que nós já deixamos de analisar a muito tempo, mesmo vendo apenas metade.
me contou sobre nossa fragilidade,
e de como é fácil nos atingir, apenas descordando de algo em que acreditamos,
explicou o peso dos sentimentos,
e quão Mais verdadeiros ele se tornam quando estamos sós...
explicou que "verdadeiro" nada mais é do que a situação em que se está passando no momento....
e que dentro da nossa dificuldade de deixar os momentos passarem, acabamos nos atrelando a alguns deles e deixando-os presos dentro de nós mesmos... Talvez em algum lugar entre o centro da coluna e a boca do estômago...
Me falou também que na nossa insistência de "viver todos os momentos" acabamos perdendo a percepção do que é, e quanto vale cada um deles...
Disse algumas coisas sobre a esperança,
e de como alimentá-la era ao mesmo tempo nossa Glória e nossa Ruína,
de como perdíamos tempo depositando esperanças no impossível,
e de como deixávamos de apostar nas coisas que dariam certo e nos fariam melhores,
Da brecha de uma porta,
como quem enxerga apenas com metade de um olho fechado, foi capaz de formular idéias que seríamos incapazes de conceber... e de valores tão afastados dos nossos, que em palavras não seriam compreendidos.
Eu lhe disse:
"são sentimentos... os verdadeiros são os mais difíceis e até impossíveis de serem descritos..."
incapaz de saber sentir... ficou confuso, e se afastou ainda mais para dentro de sua própria escuridão.
foi quando compreendeu que o que andava consumindo a sí próprio era exatamente um desses sentimentos que te disse...
ANGÚSTIA...
Resolveu sair,
e ao olhar a vida pela primeira vez numa totalidade, percebeu que não pertencia e nem tinha habilidades para lidar com ela.
...
Da última vez que falou comigo, estava muito estranho,
explicou que sair foi um erro, e que do mesmo modo que não pertencia a totalidade... também já não pertencia mais ao mundo do "entreaberto".
não tinha mais espaço para suas concepções dentro de sí próprio...
foi então que se despediu,
suas lágrimas eram negras...
e foi observando uma delas cair no chão que o perdi de vista... e nunca mais voltei a ver
...
ele fora embora,
mas deixou algo no seu lugar,
na mesma posição
enxergando apenas a metade
tentei enxergar... mas era denso demais.
e só consegui ler:
"Coração..."